Doses de felicidade

Ontem foi dia de transe. Na vila de Pessene, passei a manhã discutindo os desafios diários das mamanas. Eram quase 30 mulheres. Tinha homem também, um ou outro com participação intensa no começo mas minimizada quando elas entraram em cena. Para tentar diminuir a vala gigantesca que separa nossas realidades, fui com minha capulana e toda prosa abri o encontro falando em changana, num texto bonitinho e parcialmente decorado, parcialmente lido. Me apresentei (nome, família, origem), disse onde morava, porque estava ali e o que pretendia para aquele encontro. Terminei com um xi changana xa mina xi helile, swoswi hi ta kanela xilungo (literalmente “meu changana termina aqui, agora vou falar ‘língua de branco’”), e todo mundo “ahhhhh”. Desenhamos um mapa da aldeia, discutimos indicadores e decidimos quem seriam as beneficiárias. No final elas até brigaram entre si pois todas queriam entrar no projeto, mas o processo foi super democrático e foram elas que decidiram os critérios para participar. E, assim, tentando trazer todas para a conversa, fomos caminhando, passo-a-passo, uma manhã inteira entre português e changana, dificuldades e soluções, crianças chorando e senhoras a falarem de suas vidas. Tudo entre dois trens, o que as trouxe e o que as levou. Foi o barulho do trem à distância alcançar a vila e, num instante, todas as cadeiras desapareceram. Capulanas ajeitadas no corpo, filhos presos nas costas, a reunião acabou. Minha viagem de volta foi tomada pelo transe, quantas vidas e realidadestão diferentes cabem neste mundo?, como são incríveis a forma como cada um consegue levar sua vida!, como são boas as doses de felicidade que a vida nos dá.