15 novembro 2006

Uma tarde com Victoria Maria

Victoria Maria é a sobrinha do Erastus, jardineiro da nossa casa. O Erastus já veio embutido na casa, a Victoria veio a pedido meu pois precisava de alguém para arrumar a casa uma vez por semana. Quando perguntei qual o grau de parentesco, me disseram que Erastus era avô da Maria. Achei estranho, perguntei as idades e vi que era impossível. Erastus ainda fala um inglês rastaquera, o da Maria é praticamente nulo. Entre um papo e outro entendi que Erastus é tio da Maria. Introduzi uncle e niece no vocabulário deles e de retorno recebi uma gargalhada. Fiquei sem entender, mas ri também.

Hoje Maria veio pela segunda vez. Pela conversa que tivemos até então, numa língua que nem sei qual, entendi que Maria é um pouco mais nova que eu, tem dois filhos pequenos, o Immanuel e o Jonas, que moram no norte com a mãe dela. Ela veio há pouco pra Windhoek para arranjar trabalho. Como não é difícil explicar nada do que se quer em termos de limpeza de casa, as tentativas de conversa sobre a vida estavam, até então, limitadas.

Minha tarefa dos últimos dias tem sido a de tabular um questionário feito com mulheres em Oniipa, uma vila no norte. O parceiro local traduziu os questionários que enviei para o oshiwambo e, portanto, as respostas vêm sendo decifradas por mim em tardes de surtos, excel e descobertas. Minha planilha imensa com números e percentuais tinha vários quadradinhos amarelos, indicando onde eu precisaria de um tradutor. Para adiantar o trabalho, resolvi perguntar para Maria algumas coisas meio básicas, que ela poderia apontar. E assim, aos poucos, fui entendendo o que as entrevistadas, senhoras que cuidam de pessoas com deficiência física, carregam quando visitam seus pacientes. Algumas já estão há 19 anos fazendo este trabalho, que é totalmente voluntário. 83% são avós, o que é muito indicativo do que acontece por aqui: generalizando um pouco, mas dizendo uma verdade-verdadeira, quase todo mundo em idade produtiva está morrendo. As crianças ficam, as avós enterram os filhos, cuidam dos netos e ajudam quem tem HIV e não pode mais sair de casa, ou quem tem deficiência física/mental e não tem mais quem cuide. Praticamente todas as mulheres reclamam de dores nas costas, peito, pescoço, cabeça, lombar e coluna por causa dos baldes de água e lenha que carregam na cabeça, todos os dias, por horas a fio. Em média, andam 8 km para visitar cada um de seus pacientes. Aconselham as famílias sobre como cuidar de pacientes com HIV ou deficientes físicos, limpam e alimentam os pacientes - que muitas vezes estão completamente sozinhos e sem capacidade de movimento, fazem curativos, ensinam exercícios físicos, levam para clínicas, ajudam nos procedimentos burocráticos de registro. Tudo andando, andando muitas horas, andando sem dinheiro mas com a certeza de estar fazendo algo pela sua vila. Quando estávamos com elas, cantaram e dançaram e passaram um dia nos explicando o trabalho, as dificuldades, as soluções.

Parte disso, eu aprendi no encontro com as senhoras no norte. Outra parte, mais detalhada, eu entendi com a Maria ao meu lado, me explicando, apontando, fazendo mímica. Quando eu não entendia ela pegava o lápis e escrevia: sell goat, maize, tools, num inglês surpreendente arrancado do fundo da gaveta. Aos poucos fomos desvendando as respostas e nos entendendo. Meu oshiwambo passando a existir, o inglês dela ficando mais afiado. No final, deciframos juntas que ehangano quer dizer organização social e que home-based care se diz gwonzuulonkalo.

Já está tudo resolvido, Maria é a minha nova professora de oshiwambo e tradutora para todas as próximas tardes de pesquisa.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cara Clarisse:
Volta e meia estou por aqui lendo os seus textos. O de hoje me deixou particularmente emocionado, sobretudo ao ver as fotos. Imagino as dificuldades, que só a dedicação extrema dessa gente consegue suplantar. Nessas horas a gente vê que ainda pode acreditar no Ser Humano...
Belo texto, obrigado!
Um abraço,
Wilson Cavalcanti
São José dos Campos, SP

Anônimo disse...

Oi Clarisse,
Que experiência incrível vc está tendo! Pena que quando vc esteve aqui no Rio só nos vimos naquela comemoração do SVP. Mas agora que eu conheci este seu blog, estarei aqui sempre lendo seus posts.
Parabéns e muito sucesso!
beijos, Bel