16 abril 2007

The idea

Mais uma vez posto aqui um e-mail do André, que anda mochilando pelo continente Africano. O primero ponto de parada dele foi na Namíbia, e foi recebido em casa pelo Michael enquanto eu curtia minhas férias no Brasil. Daqui ele foi para África do Sul, Moçambique, acho que Quênia, República Democrática do Congo. Pra falar a verdade, nem sei direito por onde ele passou, mas ao que entendo sua viagem está chegando ao fim. Espero que ele esteja preparado para voltar ao Brasil depois de tudo o que viveu por aqui. O esquisito é que quando viajamos para Europa, por exemplo, o pós-compartilhar no Brasil é coisa óbvia. Acho que o mesmo não acontecerá quando ele terminar seu "mochilão africano"....

Bem, veja aí o que ele conta sobre a RDC. Ele começou seu e-mail citando Heart of Darkness, do Conrad, um dos primeiros livros que li quando cheguei por aqui. Deve ser parte da bibliografia obrigatória. A grande coincidência é que a citação que ele faz é a mesma que no meu livro eu marquei com um x:

"The conquest of the earth, which mostly means the taking it away from those who have a different complexion or slightly flatter nose than ourselves, is not a pretty thing when you look into it much".

E que continua assim: "What redeems it is the idea only. An idea at the back of it; not a sentimental pretence but an idea; and an unselfish belief in the idea -- something you can set up, and bow down before, and offer a sacrifice to...".

Heart of Darkness, Joseph Conrad

----- Forwarded Message ----
From: André Reinach
Sent: Monday, 16 April, 2007 10:35:58 AM
Subject: O Estado Livre

"The conquest of the earth, which mostly means the taking it away from those who have a different complexion or slightly flatter nose than ourselves, is not a pretty thing when you look into it much".
Heart of Darkness, Joseph Conrad

Goma tem duas vidas, muitas mortes. o Congo, por inteiro. ha toda uma civilizacao sotterada pela lava, a mesma civilizacao. Um recomeco, mas que nada traz de novo.

Em 2003, o vulcao expos sua razao de existir, espalhando cemiterios de automovies por toda a parte, varrendo a casa das pessoas para debaixo de um espesso cobertor de pedra. Hoje, a vida de cima, que renasceu dois metros mais alta do que a de antes, se tornou ainda mais cinzenta. Uma poeira preta cobre o ar quando os camburoes da ONU passam, levando soldados indianos para passear. Ha uma certa temeridade que nasce das ruas feitas de lava endurecida, um algo de nada bom, sobretudo com tantos land-hovers brancos por ai. Aqui pelo menos eles tem a justificativa de que ateh para andar na cidade eh necessario um 4x4. O mau pressagio se antecipa quando eh cruzada a fronteira: nao se ve nenhum vestigio de mercado negro. Quer dizer que ninguem estah vindo pra cah, ou que voce vai precisar dos seus dolares por aqui.

O congoles que toca o barco me explica as coisas que nao sao visiveis do lado de cah da janela do carro. Todos correm para lah e para cah, pagando tudo em dolar. Nao, ao contrario do que parece, esse nao eh um plano de paridade monetaria criado pelo presidente para agradar a classe media. Eh a economia de um pais em guerra, que depende de modo absoluto de ONGs e agencias multi-laterais. Todo dia, acordam sem saber o que vao comer no almoco: saem a procura de qualquer tipo de emprego informal. Ajudam a empurrar o carreto em troca do almoco, pegam agua no lago, ou o que mais se possa imaginar. Se tem uma moto, vira taxista. Uma bicicleta, vai carregar peso. Os gadaffis vendem gasolina em galoes na beira da estrada, policiais realmente mal pagos recebem pequenas propinas do dia a dia. Uma pessoa acena na beira da rua, com um balde amarelo na mao. Pedem uma contribuicao dos carros que passam por ter tapado com areia os buracos do asfalto.

Mas o assombro vem mais tarde, quando se descobre o que acontece, aconteceu, a 50, 60 kilometros da cidade: virtualmente todas as mulheres das vilas ao redor foram estupradas ou submetidas a algum tipo de violencia sexual. Melhor seria dizer, meninas.

Elas aos poucos comecaram a sair do mato, enxotadas de suas vilas por sofrerem dessa doenca tenebrosa chamada fistula. Submetidas a estupros multiplos, se tornaram incontinentes, e a humilhacao de conviver com isso se soma ao desprezo dos maridos que as abandonaram e `a condenacao das comunidades ao rebaixar um ser humano a condicao de animal.

Aos poucos, vou entendendo que se trata de algo muito mais enraizado do que a recorrente dupla pilhagem/estupro, que se tornou dia-a-dia tanto de soldados quannto de rebeldes. A violencia sexual se tornou, atraves dos anos de sedimentacao, uma especie de moeda de troca que garante acesso a todos os servicos que sobraram em um pais eternamente a beira da catastrofe, `a espera do vulcao explodir. Aparecem relatos de padres estupradores, de medicos que condicionam tratamento a favores sexuais, professores que soh dao notas `as alunas se elas fizerem sexo com eles. Isso acabou, com o passar do tempo, se tornando mais ou menos aceito. Unica explicacao para a completa falta de revolta das mulheres contra esse estado de coisas. Ficam esperando a redencao cair do ceu, nesse caso, do homem branco.

Fui visitar uma fazenda modelo. Trouxeram novas variedades de vegetais, introduziram novas especies, como coelho e porquinho da india, transformaram a poeira das ruas em terra fertil. Mas 3 meses atras, soldados vieram no meio da noite e pilharam todos os canos de irrigacao, alem de matar para comer todos os coelhos e porquinhos da india. Foi a terceira pilhagem dos ultimos tempos, nada mais do que o "viver da terra" que se tornou modo de vida dos militares a muito tempo, nascido e encorajado a muitos anos atras. Eles pilham, nos reconstruimos. Uma especie de Sisifo dos tempos modernos: ele sabe que se empurrar a pedra ateh lah em cima, ela vai rolar ateh lah embaixo. Ele pode escolher nao empurra-la, mas empurra mesmo assim.

Tudo seria mais facil se pudessemos culpar a natural propensao desses congoleses ao furto e ao estupro. Compra-se um compasso e passamos a medir o tamanho das cabecas, como os Belgas fizeram. Um continente inteiro sem politica e sem historia, como gostariamos de acreditar. Mas a realidade eh obvia demais para ser ignorada.

Nunca a maxima "Pobreza do povo, riqueza da nacao" foi tao apropriada. Do tamanho da europa ocidental, o Congo faz fronteira com nove paises africanos, ligando o leste ao oeste, o norte ao sul. Eh o pais mais rico em minerais do continente: cobalto, diamantes, cobre, etc. O uranio usado para bombardear Hiroshima e Nagasaki na segunda guerra veio do Congo.
Ha tambem a grande joia do momento, Coltan. Eh fundamental na fabricacao de celurares, assim como para foguetes e outros produtos de alta tecnologia. A sabedoria popular mostra que a pior coisa que pode acontecer com um pais africano eh ter recursos.

A guerra estourou em 1997. Chamada de 1a grande guerra africana, foi o conflito que mais matou desde a segunda guerra mundial. Com a derrocada da ditadura de Mobutu (o ditador mais tragicomico que o ocidente conseguiu inventar, aquele que levou a kleptocracia as suas ultimas consequencias), comecou um pega-pra-capar generalizado, em que todos os paises da regiao (assim como as grandes potencias ocidentais) correram para extrair o maximo possivel do que se escondia por debaixo da terra. Um capitalismo de guerra rapidamente se formou, o que nada mais eh do que por a olhos nus o que os belgas fizeram na colonizacao, e o que o Mobutu deu sequenci\ia. Algumas grandes corporacoes de mineracao contrataram mercenarios para proteger suas propriedades, outras pagaram rebeldes locais para garantir a permanencia do processo. Ha relatos de mercenarios da europa do leste, loiros de olhos azuis, patrulhando as florestas tropicais do congo. As exportacoes de Coltan de Uganda e Rwanda (os dois aliados dos Eua na regiao) cresceram notoriamente nesse periodo. Some-se a isso a crise dos refugiados de Rwanda, essa mais uma grande patetada da ONU, ao criar um gigantesco campo de refugiados para os perpetradores do genocidio, contribuindo para desetabilizar toda a regiao. Mas por que ninguem reage?

A raiz da exploracao congolesa eh muito mais antiga, desde quando o rei Leopoldo II resolveu criar um gigantesco quintal particular em um continente que ateh entao mal havia visto direito a pele branca. Apos 50 anos de reinado sangrento, com a independencia do Congo e a emergencia de um presidente popular que falava em pan-africanismo, um possivel desvio de rota se abriu. Mas a CIA logo tratou de fecha-lo, assassinando (em conluio com mercenarios belgas), o tal presidente, e colocando no poder Joseph Mobutu ( que depois trocou seu nome para Mobutu Sese Seko Nkuku Ngbendu wa Za Banga, que quer dizer "O guerreiro todo poderoso que, devido a sua perseveranca e vontade inflexivel de vencer, vai de conquista em conquista deixando fogo em seu caminho e emergindo do sangue e das cinzas dos seus inimigos como o sol que conquista a noite"). O Congo era uma peca fundamental no xadrez da guerra fria, e a direcao do pais nao podia ser deixada ao leu.

Alias, uma das cenas mais constrangedoras dessa mesma guerra ( que como se sabe, de fria nao teve nada) eh uma foto do Mobutu com o entao presidente Reagan com uma legenda embaixo, citando uma afirmacao do americano sobre o ditador: "Um homem de bom senso e boa vontade". Pode se falar o que quiser do Mobutu. Menos que ele eh um homem de bom senso. Mesmo o mais cinico dos humanos nao conseguiria afirmar isso.

Estamos falando de um homem que transformou o banco central do pais em sua conta corrente particular. Que construiu um palacio absurdo no meio da selva com um predio de arquitetura chinesa, com uns pavoes passeando pelo jardim. Que fretava concordes para levar sua familia em viagens `a disney. Que, para impressionar seus visitantes, os levava para uma mina e distribuia sacos e pas para que cada um levasse uns diamantes para casa de brinde. Que comprou e corrompeu todos os seus adversarios politicos, e quando isso nao bastava, recebeu ajuda francesa e americana para reprimir rebelioes. Mobutu sabia jogar muito bem com as grandes potencias, jogando a Belgica contra a Franca e os dois paises contra os EUA. Tudo isso enquanto o FMI continuava a despejar emprestimos milionarios para o seu importante aliado, emprestimos que suas duas esposas gemeas torravam em viagens a Paris. como cobrar, agora, essa divida absurda e ilegitima do povo congoleses?

Mas talvez o maior dano que ele causou vem da disseminacao absoluta do roubo e da corrupcao por todos os extratos da sociedade. Aos poucos os Zaireanos (esqueci de dizer que ele trocou o nome do pais de Congo para Zaire, em um bizarro programa ideologico chamado autenticidade) foram compreendendo que era mais facil (e lucrativo) jogar pela falta de regras do jogo do que qualquer outra coisa. Isso culminou na formacao de uma moral do poder de fogo, em que o interesse unico do mais forte eh roubar do mais fraco, exercendo seu poder de mando da forma mais arbitraria possivel. Como disse um amigo meu, a logica do "Let it rip". A pilhagem como modo de vida.

E hoje, mais de cem anos desde os primeiros sonhos imperialistas de Leopoldo II, que batizou de Congo Free State o seu playground, aludindo ao carater livre para a iniciativa privada que o jogo imperial da conferencia de Berlim lhe deu; hoje, quando as grandes corporacoes se degladiam por recursos materiais; enquanto americanos e franceses financiam rebeldes que continuam tocando o terror pelo pais; enquanto a ONU patrulha dubiamente a periferia da cidade, protegendo as ONGs mas nao quem realmente precisa, ve-se que o Congo de hoje eh tao somente o Congo de outrora. Nao se trata propriamente de um pais, mas de uma grande zona indeterminada no mapa africano. Literalmente um estado livre, como afirmava o seu primeiro nome, condenado a base da forca a estar sempre muito, muito perto do chao.

abracos,
Andre