01 março 2006

... Vito la mina hi Clarisse

Português como língua oficial?
Português é a língua oficial de Moçambique, mas não é falada por toda a população. Em Maputo, capital, é claro que a grande maioria fala, mas quando se vai para o campo dá para perceber que a maioria não fala, principalmente em se tratando dos adultos. Na época colonial, a maior parte dos negros não ia à escola ou, quando ia, era somente até o primário. Em 1975, ano da independência, apenas 5% da população moçambicana sabia ler. No pós-75 o FRELIMO implementou diversos programas de educação, e o português foi definido como língua oficial, já que o objetivo era criar uma identidade nacional e cultural do país.
A estratégia de ataque da RENAMO – que na década de 80 fez frente ao FRELIMO resultando numa guerra civil de 16 anos – era destruir a infra-estrutura do país, a começar pelas áreas rurais. Ou seja, escolas, estradas, pontes, hospitais, clínicas, tudo foi colocado abaixo. Professores e médicos eram os principais alvos para assassinatos . A RENAMO era mantida pelas forças sul-africanas e demais governos que se opunham à independência dos países africanos (por exemplo a ex-Rhodésia, que era o Zimbábue de Ian Smith). Segundo Alex Thomson, o objetivo era dizer que os negros não tinham capacidade de governar seus povos.
Bem, o resultado disso foi que parte da população camponesa hoje adulta não se comunica plenamente em português (a guerra acabou há 15 anos). As crianças filhas destas pessoas não falam português até entrarem na escola (geralmente com 7 anos), quando passam pela estranha e árdua experiência de não ter nenhuma aula em sua língua materna – o que me parece um tanto ou quanto esquizofrênico.
Agora Moçambique (principalmente Maputo) vive um outro processo lingüístico que é a absorção do inglês, por duas questões óbvias: 1) está rodeado de países onde o inglês é a língua oficial (África do Sul, Swazilândia, Zimbábue, Zâmbia, Malawi e Tanzânia); e 2) tem uma indústria de cooperação internacional gigantesca (leia-se ONU e ONGs) que trabalha oficialmente em inglês. Para se ter uma idéia, eu já vi gente que mora aqui há algum tempo e praticamente não fala português ou qualquer língua local. “Tá nice” é expressão corriqueira.

Moçambique e seus 60 dialetos
Não é de se estranhar que o FRELIMO tenha optado pelo português como língua oficial. Em Moçambique se fala mais ou menos 60 dialetos, todos oriundos do bantu, uma família lingüistica de mais de 400 línguas.
De modo geral, existe uma divisão entre o que se fala no norte e no sul. Para cima do rio Zambézia, há vários dialetos que misturam o makua e o lomwe. Nas regiões costeiras ao norte do pais, se fala kiSwahili, uma língua bantu simplificada que tem influências árabes e era muito utilizada para o comércio. Para o sul, a maioria fala dialetos do tsonga – também falado na África do Sul –, tonga e shona. Em Maputo os dois principais dialetos são changana (ou shanghana) e ronga.

Aprendendo changana
O imenso preâmbulo acima foi para dizer que comecei aulas de changana. Não me parece ser uma língua com muitas complexidades gramaticais, mas tem lá suas esquisitices.
Eu realmente não tenho a menor pretensão de que vou sair falando changana, já que a estrutura e os sons são bem diferentes do que eu sou capaz. Mas já que estou coordenando um projeto com camponesas nas 3 províncias do sul, quero poder dizer as coisas mais básicas e tentar estabelecer uma relação de mais confiança ou respeito. Então, cá estão as poucas coisas que sei até agora:

Lichile. Vito la mina hi Clarisse. Ni wa ka Fernandes Cunha. Nini makume ma mbirihi ni tslhanu na mbirihi. Ni pfa Brasil, a Rio de Janeiro, kambe ni tsama a Moçambique, a Maputo. Ni tsama ni ndzango wa va moçambicano. A ni tshatiwanga kambe ni tsembisiwile. A nina vana.

Bom dia. Meu nome é Clarisse. Sou da família Fernandes Cunha. Tenho 27 anos. Sou do Brasil, do Rio de Janeiro, mas moro em Moçambique, em Maputo. Moro com uma família de moçambicanos. Não sou casada mas sou comprometida. Não tenho filhos.

Pequena interpretação de texto... coisas interessantes (ou bizarras):
Idade – apesar de estar aprendendo como se fala os números em changana, na verdade eles geralmente usam em português pois em changana é complicadíssimo! Para dizer 27 tenho que falar 10 x 2 + 5 + 2. Só tem palavra para alguns números.
Aqui tem sempre isso de perguntar qual é sua família, se é casado ou não, se tem filhos, etc. Em alguns casos (principalmente no campo) eu falo que não sou casada mas tenho tipo noivo. A sociedade é muito machista e mulher da minha idade solteira é algo estranho.
Agora, essa coisa machista é desde a língua mesmo. Um homem responde sou ou não sou casado (tshatanga), ou sou ou não sou comprometido (tsembisile). A mulher, por sua vez, diz “fui ou não casada” (tshatiwanga) – o significado literal é “levada”, ou seja, levada da família –, ou fui ou não fui comprometida (tsembisiwile). O wa ou wi nestes casos se referem a uma atitude passiva da mulher em relação ao casamento.

-- e aí, o comentário da mãe psicanalista:
Foi sobre como construir um alfabeto para a língua Bantu que eu vi um filme na França. Um documentário (D’une langue a l'autre). A primeira parte era sobre um africano (não me recordo o país) que preparou um alfabeto para o Bantu. A segunda parte era sobre pessoas que foram de lugares diferentes para Israel. Elas tinham que passar de suas línguas locais (húngaro, russo, árabe, alemão, etc.) para o hebreu. O tema era esse. O trauma de sair da língua digamos 'materna', afetiva, para a língua do laço social mais amplo, em piscanalês a língua do pai (da lei, da norma, da pólis). O que vc comenta como sendo um tanto esquizofrênico da passagem das crianças da vida familiar para entrar numa escola e ter educação em português. A educação que lhes poderá dar um lugar e uma chance na vida.
Essa passagem também se dá na mesma língua: pois sempre se tem mais tolerância na família do que na vida. Ao ser alfabetizada a criança precisa sair do seu mundinho e entrar no mundo mais além de seu familiar. Porém, quando se tem essas confusões de poder, povos e raças, isso é bem mais traumático. A língua é mais que um vocabulário e fonemas diferentes: a língua é o pensamento estabelecido por uma tradição sobre o mundo e suas relações. Seu texto em changana revela isso. O que vc precisa dizer em virtude de uma ideologia subjacente à construção do discurso.

5 comentários:

Anônimo disse...

Oi Clarisse,

Pesquisei um pouco mais e consegui as informações sobre a parte do documentário feito por Nurith Aviv que eu não me recordava bem. Vale a pena conferir neste site:
http://www.caacart.com/html/bouabre_bio_english.html

Bjs, Heloisa.

Aichego disse...

Saudades...

Magnus Lewan disse...

"Para dizer 27 tenho que falar 10 x 2 + 5 + 2. Só tem palavra para alguns números."
Thanks for that info! I thought I remembered that was the case, but looking on the internet for confirmation, yours was the only page I found. Kanimambo!

Juliana disse...

Ola Clarisse

Também sou brasileira e estou morando em Maputo ha 3 meses, queria muito aprender a falar changana, aonde voce aprendeu? POderia me indicar. Obrigada. Abraços

Juliana

Anônimo disse...

outra Heloisa na linha...
eu quero tb aprender um pouco de changana, pois vou a moçambique novamente
Tem algum material possivel para se ler?
abraço