02 fevereiro 2007

Eu na “África”

Chego na África e descubro que África não existe.

Chego e descubro assentamentos ao redor de Maputo e de Johanesburgo, casas coloridas em Katutura, crianças pedindo esmola na Cidade do Cabo e em Manzini. Negros, brancos, amarelos, uma mistura. Tudo muito parecido com o que já vi na vida. Muita pobreza e muita riqueza em dois mundos paralelos. Todo mundo enlouquecido com seus celulares, outdoors divulgando Nokia, Colgate, Omo e o “viva no lado Coca-Cola da vida”.


Tudo muito parecido mas com as cestas e colares e miçangas e tecidos que dão a cor que a gente espera. E então dá aquele alívio, “ah! Então a África existe, está aqui a cor da África”.


Mas a África que imaginamos não existe, o que existe são histórias e estórias. E eu para sempre perdida nas divisões imaginárias—ou enfatizadas—de grupos, tradições, danças, ritmos, línguas.


Tudo o que se houve é “in our tradition”, e você se pega pensando como são atados à tradição!

“In our tradition we eat dogs” – mas não é todo mundo que admite.

“In our tradition we use beads around the belly” – ninguém sabe explicar o porquê.

“Our traditional neckless” – e ficam chocados se você estiver usando também.

“Our traditional skirts” – mas a gente bem sabe que antes dos europeus, as mulheres Ovambo não andavam com saias até o pé.


A África não é só todo o continente, mas o mundo inteiro numa diáspora quase que sem precedentes.
Mas o conceito de África é a negação de espontaneidade.

A África que imaginamos não é espontânea. A não-África é.

Um fluxo de tradições num degradé de coreldraw.


Eu na África descubro o quão generosa e egoísta posso ser.

O quão simples ou sofisticada ou mimada me permito ser.

O quão branca ou negra ou cega sou.

Eu na África descubro que não há África. Há gente.

Cheiros bons e ruins.

Expectativas, frustrações, determinações.

Esperanças com ou sem fundamento.

Injustiças.

Tristezas e alegrias e incompreensões.


Eu na África descubro que não há eu.

E que não há África.

Há apenas o plural de tudo. O extrapolar de centenas de línguas, tradições, adaptações, miscigenações, preconceitos.
Possibilidades.


Eu na África descubro os muitos eus nestas muitas áfricas.


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De repente vieram as chuvas e a cor da Namíbia mudou. Tudo mais verde. Os rios, que pela estrada eu sempre via vazios, estão tão cheios que é difícil acreditar que ali não havia água há uma semana. Os grandes e pequenos oshanas no norte dão uma nova cara às vilas. Agora dá pra entender porque as casas estão dispostas de certa maneira. A lógica espacial que estava escondida (para mim) surgiu, afinal.

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Últimas duas semanas agitadíssimas, eu no meio de seis diferentes discussões em grupo (com um total de 310 pessoas!). Houve momentos em que eu sentia a adrenalina correndo no sangue. Noutros eu me olhava de fora, como que num transe. Foi em Okatana que caiu a ficha sobre o que ando fazendo por aqui.

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Um pedido desses que se faz uma vez na vida foi feito quando estávamos nos fundos de um dos armazéns da Missão, 300 caixas de bicicletas ao redor, altares, estoques de Cristos e demais bugigangas religiosas em miniatura. Um pedido e uma resposta e só então entendi que isso só poderia acontecer mesmo uma vez na vida, e tinha que ser aqui, com milhares de Cristos de testemunha. Nunca me achei tão católica.

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A propósito, pela primeira vez eu vi imagens de Cristo, Nossa Senhora e Apóstolos como negros. Mas há um mês, quando estávamos em Okathitu, ouvi uma explicação completa de que Cristo era branco sim. Nunca viu as fotos?

As saias e miçangas Ovambo que eu tanto amo.

Ah, e os cabelos... As negras jamais usam seus verdadeiros cabelos. Fazem tranças, mexem e remexem, usam perucas e aparecem cada dia com um tipo diferente. Eu me lembrando das “Perucas Lady, tá”?





3 comentários:

Anônimo disse...

Pode parecer bobo mas quero começar parodiando:
Eu no blog da minha filha:
Descobrindo que ela escreve bem DDDD++++.
Perguntando se ela ainda pode ser chamada de 'minha' filha sem posse nem orgulho barato?
Embatucando onde foi que a África entrou no sangue dela????
Curiosíssima sobre qual terá sido seu pedido de cristã?
Rindo e me lembrando do seu papel cômico no teatro do colégio falando e usando perucas Lady.
Agradecendo esse pedido que eu nem fiz... como poderia ter imaginado isso? Mas é fato: há uma Clarisse tão legal, ex-minha, na África de todos os mundos.
Bjs, Heloisa.

opiniática disse...

É isso ai minha nega! Somos nós no mundo!

bj

saudades

Anônimo disse...
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