23 outubro 2008

Recordar é viver

(ou parece que surtei mas estou sóbria e comendo quinoa)

Eu fico imaginando a garota descendo os boulevares parisienses nas rodinhas, imaginação tal e tão detalhada que me pego pensando se os cabelos estavam presos pra trás, se tinha capacete, se levava os óculos na cara, se sorria, como decidia em que rua virar, se tinha joelheiras, e como era que o vento lhe inspirava. Imaginá-la assim me leva a uma série de pensamentos (aparentemente desarticulados) sobre minha vida. Fico com vontade de ouvir Franz Ferdinand. "So Eleanor take a Greenpoint three-point turn / Towards the hidden sun / You know you are so elegant when you run / Oh if you run / You can run to that statue with the dictionary / Climb to her fingernail and / Leap, yeah take an atmospheric leap / Let the jet stream set you down / I could be there when you land". Não acho o CD, fico desapontada, e na falta de alternativa escolho Nina Simone. E penso ah, Nina é Nina, então vale, pois essa foi minha segunda ida à Paris, num fim de semana exprimido entre estudos e surtos londrinos. Era eu e Nina e nosso encontro no Pompidou. Aí lembro de como torci o pé andando nos boulevares onde, hoje, a garota roda, e que continuei andando mesmo assim pois o tempo era curto, e a vida intensa. Estávamos a caminho da Pont Neuf, por volta das 5 da tarde, rumo ao pôr do sol com vinho. Éramos 4. E quando Paris já era noite, voltamos a andar, pé torcido, crepe de nutella, bares, discussões sobre democracia racial no Brasil. Mais que um bar--dois ou três?--mais que uma discussão, éramos quatro e meu pé terrivelmente torcido. E no lembrar veio também a primeira Paris, não menos especial, mas tão diferente. O hotelzinho no quartier do Monsieur. O descobrir a pele cabeluda da Olympia. O abraço de mãe quando a vida se tornava tão desafiadora. Duas Parises, duas Clarisses--nenhuma delas mais existente. Mas aí, tem Nina Simone tocando no fundo, o que me faz voltar à realidade. Com seu "Ain't got no / I got life" me lembro do vôo Rio-Maputo. Minha primeira viagem à Moçambique. As malas cheias, um contrato, a vida toda pela frente, o restante deixado para mofar em caixas. Sem compromissos com outros, mas absolutamente compromissada comigo mesma. Com meu achar. O "eu quero página nova parede branca disco formatado" que um dia o Tiagón me imprimiu. Palavras registradas em cadernos e cortiças. Querer que me levava à tal da África, tão distante de Rio-Londres-Paris-Turquia. E no vôo da South African Airways, tinha uma estação de rádio Nina Simone. Não chamava blues, soul, jazz ou qualquer outra possibilidade. Era Nina Simone "somente" e ela cantava, entre outras pérolas, "I got life, I got my freedom, I got life". Sorriso quase lágrimas, no momento e no lembrar. No agora. Escrevo rapidamente, enquanto o desenrolar ainda me pertence, upload. E assim termino meu recordar é viver desta noite de quinta-feira, 23 de outubro. Julia dorme, cachorros latem, chove a primeira chuva do ano. Tudo dentro de um cozinhar de creme de quinoa com milho. I got life.

Ain't got no / I got life
Nina Simone

I ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, Ain't got no class
Ain't got no skirt, Ain't got no sweater
Ain't got no perfume Ain't got no bed
Ain't got no mine,

Ain't got no mother Ain't got no father
Ain't got no friends, aint got no schoolin'
Ain't got no love, Ain't got no name
Ain't got no ticket, Ain't got no culture
Ain't got no god

and what have i got
why am i alive anyway
yeah what have i got
nobody can take away...

Got my hair. Got my head
Got my brains, Got my ears
Got my eyes, Got my nose
Got my mouth, I got my smile
I got my tongue, Got my chin
Got my neck, Got my boobies
Got my heart, Got my soul
Got my back, I got my sex

I got my arms, my hands, my fingers,
my legs, my feet, my toes,
and my liver, got my blood..

I got life,
i got my freedom
i got life

I got my life, and i'm gonna keep it
i got my life, and im gonna keep it

2 comentários:

Aichego disse...

Posso me auto-citar?

Clarisse era livre
e sonhava ferozmente
que ainda seria livre...

com amor e com ciume,
barbs!

Thata disse...

bonito toda vida :)
e já parou pra pensar na Clarisse daqui alguns anos, ouvindo nina simone e lembrando da noite que tinha um bebê dormindo no quarto?
:*