18 abril 2006

Pode até ser piegas, mas tô emocionada, sim.


O que me emociona na África é o fluxo de cores de pele, roupas e matos que vão mudando como que num degradê, separadas apenas por fronteiras fictícias, recursos mal distribuídos e estrangeirismos importados.

Enquanto em Moçambique o sub- desenvolvimento impera, na Namíbia é possível ver estratégias que dão certo. E este é um dos poucos países que, ao que tudo indica, alcançará as metas de desenvolvimento definidas pela ONU.

O que achei estranho por lá, no entanto, é que é um país totalmente alemão no jeito de ser e, portanto, algumas vezes bizarro. Apesar do inglês ser a língua oficial, tem cidades pequenas onde praticamente todo mundo fala alemão, e nem sequer os cardápios de pontos turísticos são bilíngues. Nacionalmente, a língua mais falada é o africâner (uma mistura estranha de inglês com holandês e som de alemão - pelo menos para meus ouvidos ignorantes), fruto de anos de domínio sul africano.

Além dos branco azedos, são muitos os grupos étnicos na região. As mulheres hereros com seus lindos e coloridos vestidos. Os sam com a testa achatada e o olho fechadinho, todos parecidos, dando a impressão de que não se misturam muito com outros grupos, de tão semelhantes que são entre si.

Windhoek, a capital, é apenas uma cidade pequena (300 mil habitantes), limpa, organizada, e um pouco estranha. Passei meus 4 primeiros dias lá, onde me dividi entre passeios pelos pontos turísticos e deslumbramentos no armazém do BEN Namíbia.

O BEN (Bicycling Empowerment Network) foi o projeto que fui visitar. Eles trabalham com distribuição de bicicletas para diferentes comunidades e projetos. Por exemplo, atuam com grupos de mulheres que visitam famílias nas vilas rurais para tratar de doentes de HIV. Ou com mulheres (homens também, mas em minoria) que cuidam dos milhares, milhares, milhares de órfãos. Eles também projetam e produzem bicicletas-ambulâncias, o que está se tornando uma verdadeira coqueluche como solução para transporte rural. O trabalho deles é bem semelhante ao que temos feito aqui em Moçambique, e por isso temos tido boas e produtivas discussões.

Fomos ao norte do país, na fronteira com Angola, para distribuir 20 bicicletas em 2 vilas, em projetos que lidam com órfãos. Fizemos atividades com as comunidades, sentamos com eles para desenhar a vila, onde fica o centro de atendimento, onde ficam os poços para buscar água, o lugar de buscar lenha, as escolas, as clínicas, as casas. Nas vilas, dançamos com as senhoras, brincamos com as crianças, discutimos soluções simples para questões diárias. A situação lá é muito parecida com outros países gravemente afetados pela pandemia da AIDS. Muitas crianças pequenas vivem sozinhas pois os pais morreram. Outras tantas tentam sobreviver junto com as avós. É comum ver as avós dando peito pros bebês só pra eles pararem de chorar de fome. Em alguns casos os adultos dão bebidas alcóolicas (cerveja local) para “matar a fome” dos pequenos, gerando situações de abuso e malnutrição. Foi mesmo muito incrível ver tudo isso, pois quando lemos ou ouvimos parecem ser histórias tão distantes... mas quando eu vi de fato várias senhoras dando peito... nem sei direito o que senti. É difícil de explicar.

A viagem foi regada a momentos de acampamento no meio do mato e cenários encantadores. Em Grootfontein, ficamos num acampamento gracinha de um casal alemão que não se esforçou muito em falar inglês conosco. Mas eles eram bacanas e queriam comprar as 22 bicicletas que tínhamos na traseira da caminhonete para distribuir entre os moradores da comunidade local.

Em Rundu, ficamos num lodge de frente para o rio lindo-lindo que faz fronteira entre Namíbia e Angola e, pasme, havia centenas de galinhas d’Angola por lá! Também tive oportunidade de conversar (em português) com muita gente que passou anos morando na Angola, refugiados dos conflitos e do severo apartheid namibiense. Há ainda muitas famílias divididas, mas a sensação de quase-estabilidade angolana significa esperança para muitos.

Em Tsintsabis, ficamos num acampamento alucinante chamado Treesleeper Camp, onde as barracas ficam junto das copas das árvores. É um projeto que vem envolve os bushmen na gestão dos recursos naturais de suas comunidades. Os dois dias que passamos lá andamos de bicicleta

s, ouvimos histórias hilárias sobre como os bushmem caçam, vivem e tentam interagir com o resto do mundo, ainda que só um pouquinho. No meio do caminho, paramos para ver o impressionante “Giant Baobab Tree”, num dos momentos mais místicos dos últimos tempos. Paramos o carro na estrada e adentramos a reserva. Era fim do dia, o sol já se pondo e nós caminhando no meio de onde poderia simplesmente aparecer uma girafa ou um kudu... e, após muitos mosquitos e alguns sustos, nos deparamos com a árvore gigante, como que desenhada, como que saída de um conto de fadas. O medo que eu sentia na hora foi tomado pela mágica e por uma luz crepuscular inexplicável.

A descida do norte para a região central do país foi a oportunidade de ver como que um país com mata densa “de repente” se torna um deserto. Do mato pra savana, da savana pra areia pura. E o mar. E o cheiro do Atlântico. Na pequena cidade de Swakopmund, a noite foi animada com uma chuva fina que não nos impediu de pedalar a noite. Nada como lama salgada entre a secura do deserto e a brisa do mar...

Os dias foram também marcados por situações cômicas e bizarras, como uma noite num quarto de hotel que era uma lavanderia. E o carro que quebrou no meio do mato. E a cara de espanto e alegria de todos ao ver uma caminhonete passando com tantas bicicletas na traseira. E eu toda hora caindo de bicicleta. E as dezenas de picadas de mosquito que eu tive (quem tem medo de malária?) e que foram tratadas com aloe fresquinha, diretamente da floresta namibiense. E em todas as cidades os maravilhosos pães e tortas alemãs, carnes de kudus e girafas, jantares e cafés da manhã na fogueira. Tudo isso acompanhado por planos escalafobéticos sobre como ter um trabalho mais efetivo, como aprender a conversar com as pessoas e entender suas necessidades, como olhar pra realidade e não ter vontade de chorar, como salvar o mundo das cáries. Pode até ser piegas, mas foram 10 dias nos quais me emocionei pelo caminho que escolhi trilhar.

*muitas fotos em breve*

3 comentários:

Anônimo disse...

Que experiência de vida!
Liv

Anônimo disse...

É Clarisse.
Sua sede de vida é intensa. A forma de saciá-la uma quase arte. Artifícios de uma jovem diante de tanta dificuldade desse mundo.
Pedale... se pessoas como vc não exitissem, precisariam ser inventadas.
Bjs, Mãe.

André disse...

Belas fotos!