13 março 2007

Contudo, os sem-nada

Para dar uma arejada na casa, compartilho um e-mail do André Reinach, outro brasileiro que anda por essas bandas, num mochilão muito do original pela tal da África.

----- Forwarded Message ----
From: André Reinach
Sent: Monday, 12 March, 2007 11:49:02 AM
Subject: Contudo, os sem-nada

I - "Welcome to our own slice of heaven". Ele estava sendo ironico, claro. Mas poderia nao estar, essa que eh a tragedia. O gelo circulava lentamente no copo de uisque, e de longe a grade azul clara que circundava o patio parecia ainda mais azul.

A casa era agradavel, com um jardim na frente. Nada de mais, tambem. O conjunto todo formava uma vila, com outras residencias umas ao lado das outras. Ainda dentro da vila, uma arvore frondosa, proxima ao portao, onde guardas armados recostavam. Eramos cinco, sentados na varanda. Apertando os olhos, poderia se ver um familiar simbolo das duas folhas com os caules cruzados. Embaixo, le-se: UNHCR

II - Descendo do taxi que dividi com outras pessoas que esperavam na beira da estrada, sentei no muro de um bar e liguei para o meu contato. Antes, esses momentos de espera com minhas malas no meio de um lugar desconhecido me angustiavam. Mas atualmente encaro com serenidade.

Era uma cidadezinha africana qualquer. Uma unica rua poeirenta, as mulheres coloridas carregando seus bebes nas costas, o barulho dos bares e das lojas, as criancas sujas de terra. Havia sido um inferno para chegar ali, mas eu estava entusiasmado. Ia passear de land-hover branco pela primeira vez. Encontro o noruegues sisudo, o sigo subindo uma ladeira, na continuacao da unica rua. Olhando para os lados, lentamente surgem as placas: World Food Relief, World Vision, UNHCR. Right to Play: cruzamos o portao guardado por segurancas, passando por alguns land hovers. Tudo era bem arrumado, arborizado. Nao, nao era uma cidadezinha africana qualquer.

III - No dia seguinte, vamos buscar a minha licenca. Cruzamos a estrada e entramos na salinha, onde um burocrata do governo se escondia atras de uma pilha de papeis. A minha condicao me valeu o classico papo nobre sobre futebol, o que nesse caso ajuda a amaciar as coisas. Ainda ha a vantagem do burocrata ter estudado sociologia na faculdade. Os nomes Comte, Weber, Marx sao mencionados, junto dos de Ronaldo e Ronaldinho. Saio de lah sem uma licenca, mas com um nome e um numero de telefone, o que da no mesmo.

IV - Cruzo a estrada de novo e dessa vez ando um pouco na margem. De subito lembro que estou na Africa, vendo os trabalhadores lentamente subindo a ladeira. Mas logo esqueco, quando cruzo o portao azul claro para almocar. Dentro da cantina, eu tentava desossar um frango com garfo e faca, mas ele resistia bravamente. Na TV via satelite, a Al Jazeera propagava as novas noticias de sempre. A guerra na Somalia com imagens de Mogadishu em ruinas. O governo de Uganda tentando um acordo de paz com os rebeldes. Os refugiados de Darfur em barracas brancas. Na camisa do sujeito sentado ao meu lado le-se: "Takes courage to be a refugee". Com aval de meus colegas, abandono o garfo e faca. Seguro o frango com as duas maos, agora ele vai ceder a minha fome.

V - O motorista da Land-Hover acelerava na estrada de terra, enquanto o noruegues sisudo sentava no banco da frente. Logo abandonamos a paisagem da cidadezinha, que foi substituida pelas vilas ocasionais de um lado ou de outro. Ainda me impressiono, mesmo depois de todo esse tempo. Como essas mulhers conseguem carregar essas coisas na cabeca, sem as maos? Algumas carregam ateh troncos de arvore. Enquanto eu viajava por nao sei quanto tempo, passamos novamente por uma serie de placas, com os mesmos simbolos daquelas agencias que existiam na cidadezinha: European Comission, Right to Play, World Food Relief, World Vision. UNHCR: cruzamos a porteira, e agora estavamos no Nyarugusu camp.

VI - A questao dos refugiados se tornou relevante para o ocidente sobretudo a partir da segunda guerra mundial, com o imenso afluxo de judeus para todas as partes do globo, fugindo dos campos de concentracao. Claro que o problema de migracoes forcadas jah existia antes, e o concomitante esforco dos governos para resolve-lo aparece desde pelo menos a Liga das Nacoes. Mas a escala das migracoes no pos-segunda guerra foi massiva, e foi seguida da criacao das nacoes unidas. Assim, a primeira definicao de refugidado como tal foi dada pela ONU em 1951. Mal citando, refugiado eh todo aquele que abandonou seu pais por perseguicao politica, religiosa ou outra, e que nao pode ou tem um medo bem fundamentado de voltar para o seu pais. Notem que a definicao eh baseada nessa ideia de "medo bem fundamentado". Como decidir qual medo eh bem fundamentado, e qual nao eh? Resultado: a ONU decide quem eh refugiado (e dee ser tratado como tal), e quem nao eh.

VII - No caso da segunda guerra, o problema foi resolvido de modo mais ou menos simples, atraves da progressiva absorcao dos refugiados nos paises que os receberam. Assim se explica a existencia desses muitos judeus espalhados por ai, dentre os quais a minha familia. As pessoas passaram, lentamente, da jurisdicao de um estado nacao para a de outro. A questao eh que isso ocorreu em um periodo historico em que a absorcao desse excesso de mao de obra foi bem vinda pelas economias dos paises que recebiam os imigrantes. Em economias em crescimento, como aquelas da era de ouro do capitalismo do sec XX (Que pelo menos eh como o Hobsbawm chamou o periodo do pos segunda guerra), essa mao de obra (muitas vezes mal qualificada), serviu mais como impulsao do desenvolvimento capitalista do que como entrave dele.

No meio dos anos 80, ficou claro para todo mundo que nao seria mais possivel lidar com o problema dos refugiados da forma com que ele foi resolvido anteriormente. Tudo que paises com hordas de desempregados queriam ver eh mais uma onda de gente entrando pelo ladrao. Desnecessario dizer que isso ocorreu mais ou menos paralelamente com a ascensao da Africa a centro do problema, o que apenas se intensificou nos anos 90.
Face ao desinteresse crescente dos paises em integrar refugiados nas suas economias, a ONU criou a categoria de refugiados temporarios: aqueles que cruzaram as fronteiras dos seus paises, mas que soh permanecerao do outro lado da fronteira enquanto o conflito durar. Quando a poeira baixar, serao repatriados. Voila. Assim nasceu o campo de refugiados.

VIII - Eu esperava encontrar pelo menos umas fotografias do Sbastiao Salgado. Ou entao as imagens dos refugiados de Darfur, esse genocidio que estamos esperando terminar para nos sentirmos culpados por nao termos feito nada.

Mas chegando lah, eu encontro algo surpreendente semelhante a uma vila africana qualquer. Tah bem, nem tao semelhante assim. As casas eram mais limpas, assim como as ruas, sem a mais ou menos habitual sujeira jogada em qualquer canto. Algumas casas tinham partes das paredes feitas de cartolinas escritas "milho orgulhosamente doado pelo governo americano". Descubro que uns barracoes formam o posto de distribuicao de racao pelo World Food Relief, que vai lah 2 vezes por semana distribuir feijao, farinha. Mas os mercadinhos sao curiosamente iguais aos de fora, assim como as criancas semi-nuas que perseguem os carros mas tem medo de voce. As mesmas pessoas aparentemente fazendo nada, apenas te olhando, as mesmas casas de tijolinho ou pau-a-pique.

Entro em um galpao, onde estah ocorrendo um evento organizado pela World Vision. Alguma coisa sobre conscientizar a juventude sobre alguma coisa. Uma das criancas usa uma camiseta escrita "Vote Joseph Kabila". Sao refugiados do Congo. No lado direito noto uma bateria, vermelha. Uma das criancas segura um microfone sem fio, e atras de mim vejo um potente aparelho de som.

Ta bem, nao tao semelhante assim.

IX - A agua do campo eh inteira potavel, ao contrario das demais vilazinhas africanas. A saude eh proporcionada por medicos estrangeiros em sua maioria, e a educacao eh dada em boa parte pelos proprios membros do campo, que sao contratados pela ONU. Ambas sao obviamente melhores que a saude e a educacao do lado de fora. Aqueles que nao sao recrutados por alguma ONG ou agencia que trabalha no campo, ou seja, a maioria, estao impedidos de trabalhar, pois estao fora da jurisdicao de seus paises e nao podem arranjar emprego sem visto de trabalho. Ao mesmo tempo, muitos parecem se virar. Tem lojinhas, vendem tecidos ou fazem pao. Me intriga o fato que alguns tem dinheiro pra fazer essas coisas, e descubro que o campo nao eh uma prisao. Ha uma certa economia no lugar. Eles podem sair e comprar coisas nas vilas proximas, mas tem de ter permissao, e tem de voltar ao final do dia. Alguns conseguem a permissao por algumas semanas e vao de "ferias" para os seus paises de origem, mas depois voltam. Um outro conseguiu uma bolsa de uma ONG alema e estah estudando na universidade em Dar es Salaam, mas um dia vai ter de voltar. Ha um estranho ar de normalidade no campo, uma especie de cotidiano a jah um bom tempo instituido. Ai que recebo a informacao aterradora: aquelas pessoas estao lah a 10 anos, em media. O campo tem 13 anos de vida.

X - Essas pessoas, serao pessoas? Ser uma pessoa, pelo menos em termos juridicos, significa estar sob a tutela de um estado-nacao, que prescreve direitos e deveres aos seus membros, os cidadaos. Mas ali, todos os direitos sao ofertados pela ONU e pelas ONGs internacionais, e as pessoas estao apenas parcialmente sob alei do pais inquilino. E mais, apos 10 anos, que patria existe para toda essa gente voltar? Existem muitas criancas no campo, e todas elas nasceram e cresceram lah, em um estado de bem estar social muito maior do que aquele presente do lado de fora. Serah que tanto tempo vivendo nesse nao-lugar entre dois paises, em uma situacao que deveria ser transitoria mas que se normalizou completamente, faz algum sentido voltar para um lugar chamado Congo, para uma familia, vila ou cidade que jah nao existem mais? Sobretudo quando a maioria deles vivia em zonas tao remotas que presumivelmente a propria ideia de pertencer a um pais deve ser irrelevante?

XI - Mas a opulencia que o campo demonstra, na forma do acesso que os refugiados tem a servicos e bens que estao ausentes do lado de fora, eh, na verdade, ilusoria. Tudo que eles tem lhes eh ofertado, mas nada eh deles. Do teto sob o qual eles dormem a agua que eles bebem; da escola que eles frequentam a bateria, vermelha, que talvez eles possam aprender. Sao pessoas privadas de tudo, ateh da sua forca de trabalho. Ao final, se trata de um grande laboratorio humano, perfeito para a aplicacao controlada de projetos de "desenvolvimento" e reeducacao. Conversando com um deficiente no campo, descubro que ele teve 2 anos de aula de esperanto, a alguns anos atras. Seja lah quem for o responsavel pelas aulas, por que comecar a expansao do esperanto pelo mundo atraves de um campo de refugiados?

XII - Cedo ou tarde, a ONU vai fechar a praca. Pode ser daqui a 4, 5, 10 anos, mas vai ocorrer. Eles pagam aluguel para a Tanzania para manter o lugar funcionando, e mais dia menos dia esse dinheiro vai ter de ser usado para criar outro campo, em outro lugar. Ateh por que, tudo tem limite. Enquanto isso, os refugiados vao se virando, nao sei se pensando ou nao no que vao fazer quando o dia chegar. No fundo, a coisificacao das pessoas em seu estado mais puro, viver sem amanha.

XIII - Eles citavam todos os livros conhecidos que criticam a acao da ONU e das grandes agencias de caridade na Africa. O uisque jah me tinha feito cruzar a fronteira da conveniencia, e entao resolvi perguntar:
- Voces acham tudo isso, mas estao fazendo tudo isso.
Um tanto fora da minha parte, pois se nao fosse pela generosidade e receptividade dessas pessoas eu nao estaria lah.
Seguiu um breve silencio, e entao uma serie de justificativas sobre o sentido das coisas. No final, eh o classico: o sabem, e o fazem mesmo assim.

XIV - "Resolucao da ONU eh que nem cachorro quente. Se voce sabe como eh feito, nao mastiga. Apenas engole. No questions asked". Saida diretamente da boca de um diplomata, esta frase estah no livro "We did Nothing", da jornalista LInda Pulman. Se quiserem saber como as salsichas sao produzidas, leiam o livro.
Eu, que jah nao era mesmo muito chegado em um dogao, agora que nao como mais.

***

Abrax,
Andre